segunda-feira, 14 de abril de 2008

Lupo

Conto-vos uma historia que deve ser ouvida com muita atenção. Ela revela um ponto primoroso na alma humana, que merece ser visto e refletido. Ela prova que muita coisa é bobagem, e que muita coisa é mentira. Mas não pensem que conto essa historia sem esperar algo em troca. Ah não. Pois não se iludam, não sou bom ou generoso desse jeito. Alias desconfie de todos os bonzinhos desse mundo. É uma característica que não combina com a raça humana. Quem sabe com a canina? Meu velho cão Lupo ainda me observa sem tirar o fuço das patas. Um amor! Sinto pena por ele. Não entende que ama um velho pecador, um mau homem. Pois sou sim um mau homem, daqueles que os padres advertem, mas que os ricos gostam de ter perto, por necessidade e por inteligência. Estranhamente padres nesse mundo costumam ser ricos. O que faz um sentido mais hipócrita do que irônico.

Mas vocês devem entender as circunstancias. Pequei, pois me mandaram pecar. E por gosto também. Nenhum homem que teme o pecado o comete por ser ordenado. Sobre ameaças é um caso diferente. Mas no meu caso foi por comodismo. Pequei como uma flor que chega ao outono o faria. Cabisbaixo, infeliz pelo meu futuro, mas ainda assim sem reclamar do destino e da fortuna que me são oferecidos. E, alias, essa pequena metáfora da flor é muito condizente. Afinal de contas, conto a historia, pois sou essa flor, chegando no seu inverno. A morte bate na minha porta com uma violência desnecessária. Deveria saber, após todos esses anos que não lutaria com ela. Que a aceitaria como se fosse minha amante. Pelo menos após contar essa historia. Pois com ela reivindico o perdão, senão divino, dos homens. Deixo algo que servirá de recordação, de reflexão, de explicação e de confissão.

Mas não se preocupem com a historia, muitos de vocês a considerarão um tanto sem graça, um tanto tola. E o meu pecado um tanto pequeno. O que não faz a menor diferença. Se eu conto é por temer a morte que se aproxima, e o posterior acerto de contas. Pois neste quente verão, o meu inverno parece chegar com passiva arrogância. Mas é mentira. Sei que ele é rápido, mesmo não merecendo essa pequena benção. Ou maldição, pois o diabo, como a maldade, é ansioso. E é dele que tenho medo. É por ele que me arrependo de todos os meus pecados e desejaria mudar uma coisa ou outra da minha vida. Como todo moribundo, recorro a uma ultima tentativa, uma ultima esperança. Por via das duvidas, grito com força que me arrependo, antes de soltar o ultimo suspiro. Não riam. Qualquer tentativa é valida, ainda que não honesta.

Meu nome é Alfonso. Alfonso qualquer coisa. Bastardo de nascimento, mas de um homem que deveria ser brutalmente forte, pois da minha mãe resta apenas a inteligência. Mas prestem atenção nas palavras... Nunca disse ser minha mãe muito inteligente. Mas agora o digo, pois desejo que vocês elevem um pouco o meu nível em seus pensamentos. Ser bastardo não da uma grande imagem. Preciso, nesse momento, de um pouco de imagem. Como pedirei caridade sem antes tocar os vossos corações?

Trabalhei, na época da historia, para um garoto de dezesseis anos, minha idade menos dois anos, chamado Artur de Lafonse. Nobre aristocrata, de um corpo forte e musculoso, bonito, honesto, sensível e simpático. Muito simpático! Seus olhos brilhavam com uma doçura que fazia os demais se contorcerem em uma cara bondosa quando o viam. Uma cara de quem olha para uma criança, pois no fundo, era isso que ele era. Assim, tratavam-no como tratavam de seus filhos, e não como um homem da sua posição deveria ser tratado. Não havia respeito, ou medo. Pois nele faltava algo de fundamental. Muita virtude, mas poucos miolos. Era burro. E muito. E por isso eu passei a ser seu ajudante e conselheiro. Seu pai me contratou, inicialmente, para diverti-lo. Foi uma época vergonhosa, em que as bolas saiam de minha mão apenas para cair no chão, ou a minha voz saia de minha boca sem produzir nada remotamente parecido com a melodia da musica tocada. Mas por mais incompetente que fosse, mostrei-me competente em outros aspectos. Não conto os detalhes por preguiça. Sinto-me pouco à vontade contando dessas peripécias de baixo nível. Fato é que, aos dezoito anos fui contratado para proteger Artur de espertos e de criminosos. Pois eu era grande e era esperto. E só.

Mas, como em toda a historia de cavalaria... Ou melhor, em toda a historia sobre homens, existia uma mulher. Uma mulher que, de fato, era de tirar o fôlego. Aos quinze anos, tinha um cabelo dourado como o ouro, e seu sorriso parecia ao mesmo tempo feliz e malicioso. Não havia homem, que não se encantasse e fizesse coisas estúpidas por aquele sorriso. E o seu corpo era a de uma ninfa grega, convidando, por sua inocente jovialidade, aos prazeres da carne, como nenhuma outra mulher. Mas você ouvinte, não é burro. E sei que seria um desrespeito contra a sua inteligência não admitir o obvio. Pois se meu texto é melancólico, minha descrição é romântica, induzindo a perfeição inexistente. Já descobriram, espero, que além de Artur, eu também era perdidamente apaixonado pela jovem Luana. E como todo homem apaixonado, me desmanchava pelo seu toque e pela sua voz. Eu e Artur éramos uma dupla patética ao seu alcance, meros servos de uma força maior e mais forte que nos. Pois a mulher, quando boa estrategista, ganha todas as disputas. Seu poder se estende por todos os pontos masculinos e não deixa nada escapar. Fomos dominados.

E é claro que Luana sabia de nosso amor. E achava isso um tanto divertido, brincando de ciúmes com um ar maroto, porem inocente. Pois se ela quisesse, teria arrancado a minha própria alma naqueles tempos. E a de Artur também. Perto do seu caráter e de sua manhosa força, com a facilidade com que sorria, éramos meras peças em seu tabuleiro. Felizmente, como toda mulher jovem, ela não sabia usar de todo seu poder. Mas poucos são os homens com essa benção. Poucos!

Paro meu relato por alguns instantes. Lupo mudou de posição, colocando a sua cabeça levemente em meu colo. Imagino que goste de historias de amor, pois todo ser humano, por mais horrendo que seja, gosta de historias de amor. E Lupo é muito mais humano do que eu jamais fui. Sua capacidade de amar é muito mais intensa do que a minha, e sua capacidade de perdão me envergonha. Sei que ele não aceitará meus pecados, mas os perdoara. Ele, hoje, é o meu maior mistério. Pois se fui maldoso com os animais, não achava possível que os animais, e este em especial, devolvessem com afeto minha violência. Lupo, bem na verdade, é o motivo de meu texto. Ele é o porque do porque do porque. O porque eu sinto vergonha.

Agora continuo a minha historia, pois imagino que estejam todos curiosos com minha demorada falta de assunto. Sinto que os ouvintes acham o meu relato cansativo, por não ter ação. Mas tenham paciência com este velho, ele gosta da filosofia, e a pratico até mesmo neste relato. Não posso priva-lo de uma única palavra. Pois, se a ação é importante, uma vez que é fato, definindo a pessoa, as idéias são mais importantes, pois alertam para os valores da pessoa, além de formarem uma base sólida na qual as ações possam ser tomadas. Sem burrice. Sem um cérebro não existem ações bem feitas. E inteligência é algo em falta nesse mundo. Pois assim é mais cômodo para todos.

Mas devo ir aos fatos, aos atos, pois são neles que residem as partes compreensivas da historia. Em mais uma manhã de sol, sai com Luana pelo bosque da casa de Artur. Este tinha suas lições em seu aposento. E nos dois conversávamos e riamos alto, sem medo de sermos descobertos, pois a pior punição não estragaria o prazer de ouvir aquele riso. Depois descobri ser isso uma grande mentira, é claro. Mas era jovem e estúpido. Ainda não tinha recebido da vida uma carga suficiente de maturidade e não posso ser culpado pela minha inocência. Fato é que, naquele passeio consegui algo espetacular, um beijo.

Dia seguinte, sobre as mesmas circunstâncias, consegui algo muito mais interessante. Fizemos amor às escondidas. Eu visitei o paraíso por alguns momentos. Mas receio que o pronome tenha sido muito bem utilizado. Pois “Nos” não combina com a frase. Por ser mais afoito que ela, fui brutal de mais. Mas oras, o que se esperar, minha experiência vinha de cortesãs, não de amores. E não pude conter o impulso com a gentileza necessária. No momento, não admiti, mas ela, quando muito, sentiu prazer única e exclusivamente pela carne. Nenhuma paixão desperdiçada pelo jovem ajudante. E nenhuma grande conquista para ele, que nunca mais receberia permissão de algo parecido.

E, mesmo sem receber a permissão para outra aventura, ainda olhava com pena para o jovem Artur, tão tolo, sentado ao lado da jovem que amava, ouvindo ela contar estórias de flores e duendes, e contando outras sobre cavaleiros e magos. Pois ele não havia provado o que eu havia. E não podia deixar um sorriso escapar de meus lábios. Eu era um jovem tolo, como já disse. Muito mais cego pela conquista do que pelo amor. Pois sei hoje que as atitudes mais estúpidas não são tomadas na embriaguez, mas sim na confiança demasiada, no sentimento de vitória antecipada.

Não podia desconfiar de nada. Não podia, pois não queria. Mas mesmo assim fui condenado a conhecer aquilo que não queria. E como uma faca, a verdade se enterrou em meu peito, ferindo tudo em sua passagem. Descobri em uma noite de outono. Pela janela do quarto de Artur, vi os dois se beijando. Presenciei algo ainda pior. O prazer que não tinha visto no rosto de Luana. E ainda pior, presenciei uma conversa entre amantes. Presenciei a discussão deles sobre tudo que podiam discutir. Inclusive sobre mim. Fui chamado de coisas que tenho vergonha de reproduzir. Meu orgulho já foi dilacerado em vários pedaços, em vários formatos. Isso basta. Nada mais precisa ser dito.

E qual seria o próximo passo? Qual seria, dentre os homens, o próximo sentimento? O ódio. Digo sim, o ódio. Pois nessa historia de amor, meu coração se tornou irrecuperável, sendo invadido pelo próprio ódio. E odiei Luana. Por ter destruído meu orgulho, por ter preferido o estúpido principezinho, por ter me enganado, por ter me dado esperanças e pura e simplesmente por ama-la tanto. O que é engraçado. Pois o amor não combina com ódio, assim como rosas não combinam com moscas. Não fazia sentido odiá-la por isso. E ainda não faz. Mas o coração não nos deixa selecionar os sentimentos. E mesmo, naquele tempo, não querendo admitir para mim mesmo a verdade, hoje eu a admito. Pois sou velho, e cansei dos truques humanos. Finalmente, cansei da hipocrisia, me restando apenas a ceticismo. Ainda bem que isso acontece tarde. Minha vida teria sido impossível sem a hipocrisia. Assim como a vida de todos os medíocres. Pois é necessário coragem para apostar nas rodas da fortuna com a honestidade. Coragem ou burrice. Alias, duas características que muitas vezes são uma só.

A sensação foi horrível. Foi dilacerante. Pois amar e odiar ao mesmo tempo são as sensações mais difíceis, mais complicadas de se conciliar. Como aprendi após aquele dia, amar é fácil. Podemos escolher muitas coisas para se amar em alguém, inclusive os defeitos. Mas quando o ódio invade o coração, resta uma balança sem ponto de equilíbrio, sem escape. Pesa-se tudo com choro, muita dor, raiva e vontade de vingança. Uma vingança sem sentido e sem conclusões... e o pior, não estava preparado para isso. Mentiram para mim, mentiram sem receios. Malditos padres, malditos filósofos. Amor e ódio não estão em uma linha tênue, eles tem linhas separadas, que se atravessa com forças parecidas. Por isso, eles não são contrários. Nem implicam na exclusão mutua. Imagino que se odiasse primeiro e depois amasse, ficaria confuso. Mas este não foi o caso. Fiquei destruído, consumido por mim mesmo.

E não seria verdade que amor e ódio possam se contrastar com tamanha desarmonia, mas tamanha intensidade? Pois se um dificulta o outro, eles não se excluem e nem se destroem. Eles convivem fazendo baderna, como dois inimigos que sabem ser a convivência a única forma de não desaparecer. Pois, se um não é o contrario do outro, ambos possuem o mesmo contrario: a indiferença. E a indiferença é um estado anterior a bestialidade. Anterior a tudo. E por isso não é tão estranho que seja no contrario do nada, que exista tudo. Que exista tudo o que merece ser vivido, para o bem e para o mal. Para a dor e para o prazer.

Por tudo isso, eu olho para Lupo com uma surpresa e com uma sensação de inferioridade tão grande. Pois esse cão, tão maltratado pela vida, é capaz de ser mais forte do que eu e a maioria de nos jamais poderemos ser. Olho em seus olhos e vejo apenas o amor, não enxergando ódio. Estranhíssimo, principalmente para mim que sofri dessa historia mal contada. Pois sei que ele deveria me odiar. Ele teria motivos e eu tenho motivos para ser odiado. Sei me tratar de um homem mal. Mesmo assim, não reconheço isso em seus olhos. Reconheço o perdão. Pois, por mais estranho que seja, são os animais, no fim, que conseguem equilibrar aquela balança sem equilíbrio. Sei, hoje, que Lupo é superior, e que a humanidade não merece nada além de pó e sombra. Pó e sombra!

Mas que pecado teria eu enfim cometido? Oras, cometi muitos, muitos! Mas qual seria esse tão grandioso para temer o inferno? O ouvinte não entende, e nem poderia entender. Confesso que torturei e matei muita gente sobre ordens. Também confesso que fui muito cruel com os meus inimigos e com as minhas amantes. Mas nunca mais encostei um dedo, nem em Luana, nem em Artur. Fugi para nunca mais voltar, e os seus destinos eu desconheço. Poderia ter me vingado, mas não tive forças. O amor é algo complicado. Injeta e tira forças. Torna-se mestre, e nos escravos. Escravos de algo maior, algo do qual a escravidão é prazerosa e até bem vinda. E por isso, meu pecado, meu maior pecado, já foi dito e concluído. Ele foi, e é, ser tão pequeno, ser tão fraco, ter me recusado a evoluir. Pois se este não parece um pecado grande o suficiente, saibam que é por culpa dele que os outros foram cometidos. E afirmo que eu podia ter mudado, e minha grande chance foi naquele dia. Não foi a única, mas foi a maior de todas. Fugi para viver uma vida sem humanidade, e para entender, enfim, na velhice, a minha inferioridade. Por isso peço perdão. Por não ter conseguido equilibrar o amor e ódio, como Lupo faz, me tornando, a partir de então, um pecador. Por perder essa guerra. E afinal, essa não seria a única guerra que mereceria ser travada? E, por ironia do destino, não é a única guerra que os homens insistem em não travar, sucumbindo sem luta ao ódio? E não seria essa falta, na verdade, o maior de todos os pecados?

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