segunda-feira, 14 de abril de 2008

Oceano

Os olhos se fixam no horizonte sem nada revelar. A visão é deslumbrante. Azul por todo lado, com movimentos insinuantes e um barulho aconchegante. Aquela imensidão o convida, como o mais doce entre todos os doces. Ou como a confiança sublime do misterioso que entrega seus segredos sem pedir muito, tentando pela segurança oferecida. É imenso. Os passos são incertos, mas caminham com determinação. Seus pés tocam a areia antecipando aquele que será o maior dos momentos, a descoberta. Até mesmo o cheiro de sal, é maravilhoso.

São os pés os primeiros a tocar no mar. É gélida a sensação. Ele para. Analisa a situação com cuidado, pois sente que fora ligeiramente enganado. Esperava que a promessa da imensidão viesse junta com o conforto do calor. Mas não o vem. O momento de indecisão passa rápido. Existem coisas mais importantes do que um calafrio. Segue-se a caminhada incerta, quase bêbada, em direção do meio, do fundo, do infinito.

Mas quanto mais ele anda, mais insegurança sente. A água puxa e empurra. Puxa e empurra. Tenta o derrubar, sem motivo nenhum. E o derruba. A queda é acompanhada da mais gélida sensação. Um frio invade seu peito e água entra em sua boca. Água ruim. E o choro vem aos olhos, o desespero e a incerteza tomam conta de seu pequeno corpo. Mas uma mão está pronta para socorre-lo. Ele, com um sorriso maroto no rosto, o retira da água com delicadeza, e o medo passa. A certeza daquele abraço é eterna, infinita como o mar, porém certa. Contrasta com a incerteza do antes entregue mar. Fala-se algo, mas não quer ouvir. Ameaça-se coloca-lo de volta ao ponto inicial. Mas o choro ainda não teve fim. O momento é de abraço, da calmaria perante o perigo. Que o ludibriou com promessas que nunca cumpriria.

Sentado na areia ele reavalia a situação. Não tem mais a mesma inocência nos olhos. Não tem mais a ilusão de um local sem mistérios, ingênuo. Aquilo é instável, gelado e caprichoso. Começa a andar de lado. A confiança e determinação antes demonstrados, dão lugar a passos bem menos lineares. Avança apenas para retroceder, alternando entre a coragem e medo tão rapidamente que se torna impossível ter certeza se os passos são incertos devido ao medo ou a inexperiência. Pára e observa o mar. Enquanto um pai coruja olha com um imenso sorriso a primeira epopéia de seu filho, o menino se compenetra em algo muito mais profundo. Sabe, agora, que na vida as coisas podem não ser exatamente como elas parecem. Fica imóvel, contrastando com as ondas. Se alguém o olhasse desavisado, sem poder reconhecer sua pequena idade, diria que aquele era um homem que admira, pela primeira vez, a força do oceano.

Lupo

Conto-vos uma historia que deve ser ouvida com muita atenção. Ela revela um ponto primoroso na alma humana, que merece ser visto e refletido. Ela prova que muita coisa é bobagem, e que muita coisa é mentira. Mas não pensem que conto essa historia sem esperar algo em troca. Ah não. Pois não se iludam, não sou bom ou generoso desse jeito. Alias desconfie de todos os bonzinhos desse mundo. É uma característica que não combina com a raça humana. Quem sabe com a canina? Meu velho cão Lupo ainda me observa sem tirar o fuço das patas. Um amor! Sinto pena por ele. Não entende que ama um velho pecador, um mau homem. Pois sou sim um mau homem, daqueles que os padres advertem, mas que os ricos gostam de ter perto, por necessidade e por inteligência. Estranhamente padres nesse mundo costumam ser ricos. O que faz um sentido mais hipócrita do que irônico.

Mas vocês devem entender as circunstancias. Pequei, pois me mandaram pecar. E por gosto também. Nenhum homem que teme o pecado o comete por ser ordenado. Sobre ameaças é um caso diferente. Mas no meu caso foi por comodismo. Pequei como uma flor que chega ao outono o faria. Cabisbaixo, infeliz pelo meu futuro, mas ainda assim sem reclamar do destino e da fortuna que me são oferecidos. E, alias, essa pequena metáfora da flor é muito condizente. Afinal de contas, conto a historia, pois sou essa flor, chegando no seu inverno. A morte bate na minha porta com uma violência desnecessária. Deveria saber, após todos esses anos que não lutaria com ela. Que a aceitaria como se fosse minha amante. Pelo menos após contar essa historia. Pois com ela reivindico o perdão, senão divino, dos homens. Deixo algo que servirá de recordação, de reflexão, de explicação e de confissão.

Mas não se preocupem com a historia, muitos de vocês a considerarão um tanto sem graça, um tanto tola. E o meu pecado um tanto pequeno. O que não faz a menor diferença. Se eu conto é por temer a morte que se aproxima, e o posterior acerto de contas. Pois neste quente verão, o meu inverno parece chegar com passiva arrogância. Mas é mentira. Sei que ele é rápido, mesmo não merecendo essa pequena benção. Ou maldição, pois o diabo, como a maldade, é ansioso. E é dele que tenho medo. É por ele que me arrependo de todos os meus pecados e desejaria mudar uma coisa ou outra da minha vida. Como todo moribundo, recorro a uma ultima tentativa, uma ultima esperança. Por via das duvidas, grito com força que me arrependo, antes de soltar o ultimo suspiro. Não riam. Qualquer tentativa é valida, ainda que não honesta.

Meu nome é Alfonso. Alfonso qualquer coisa. Bastardo de nascimento, mas de um homem que deveria ser brutalmente forte, pois da minha mãe resta apenas a inteligência. Mas prestem atenção nas palavras... Nunca disse ser minha mãe muito inteligente. Mas agora o digo, pois desejo que vocês elevem um pouco o meu nível em seus pensamentos. Ser bastardo não da uma grande imagem. Preciso, nesse momento, de um pouco de imagem. Como pedirei caridade sem antes tocar os vossos corações?

Trabalhei, na época da historia, para um garoto de dezesseis anos, minha idade menos dois anos, chamado Artur de Lafonse. Nobre aristocrata, de um corpo forte e musculoso, bonito, honesto, sensível e simpático. Muito simpático! Seus olhos brilhavam com uma doçura que fazia os demais se contorcerem em uma cara bondosa quando o viam. Uma cara de quem olha para uma criança, pois no fundo, era isso que ele era. Assim, tratavam-no como tratavam de seus filhos, e não como um homem da sua posição deveria ser tratado. Não havia respeito, ou medo. Pois nele faltava algo de fundamental. Muita virtude, mas poucos miolos. Era burro. E muito. E por isso eu passei a ser seu ajudante e conselheiro. Seu pai me contratou, inicialmente, para diverti-lo. Foi uma época vergonhosa, em que as bolas saiam de minha mão apenas para cair no chão, ou a minha voz saia de minha boca sem produzir nada remotamente parecido com a melodia da musica tocada. Mas por mais incompetente que fosse, mostrei-me competente em outros aspectos. Não conto os detalhes por preguiça. Sinto-me pouco à vontade contando dessas peripécias de baixo nível. Fato é que, aos dezoito anos fui contratado para proteger Artur de espertos e de criminosos. Pois eu era grande e era esperto. E só.

Mas, como em toda a historia de cavalaria... Ou melhor, em toda a historia sobre homens, existia uma mulher. Uma mulher que, de fato, era de tirar o fôlego. Aos quinze anos, tinha um cabelo dourado como o ouro, e seu sorriso parecia ao mesmo tempo feliz e malicioso. Não havia homem, que não se encantasse e fizesse coisas estúpidas por aquele sorriso. E o seu corpo era a de uma ninfa grega, convidando, por sua inocente jovialidade, aos prazeres da carne, como nenhuma outra mulher. Mas você ouvinte, não é burro. E sei que seria um desrespeito contra a sua inteligência não admitir o obvio. Pois se meu texto é melancólico, minha descrição é romântica, induzindo a perfeição inexistente. Já descobriram, espero, que além de Artur, eu também era perdidamente apaixonado pela jovem Luana. E como todo homem apaixonado, me desmanchava pelo seu toque e pela sua voz. Eu e Artur éramos uma dupla patética ao seu alcance, meros servos de uma força maior e mais forte que nos. Pois a mulher, quando boa estrategista, ganha todas as disputas. Seu poder se estende por todos os pontos masculinos e não deixa nada escapar. Fomos dominados.

E é claro que Luana sabia de nosso amor. E achava isso um tanto divertido, brincando de ciúmes com um ar maroto, porem inocente. Pois se ela quisesse, teria arrancado a minha própria alma naqueles tempos. E a de Artur também. Perto do seu caráter e de sua manhosa força, com a facilidade com que sorria, éramos meras peças em seu tabuleiro. Felizmente, como toda mulher jovem, ela não sabia usar de todo seu poder. Mas poucos são os homens com essa benção. Poucos!

Paro meu relato por alguns instantes. Lupo mudou de posição, colocando a sua cabeça levemente em meu colo. Imagino que goste de historias de amor, pois todo ser humano, por mais horrendo que seja, gosta de historias de amor. E Lupo é muito mais humano do que eu jamais fui. Sua capacidade de amar é muito mais intensa do que a minha, e sua capacidade de perdão me envergonha. Sei que ele não aceitará meus pecados, mas os perdoara. Ele, hoje, é o meu maior mistério. Pois se fui maldoso com os animais, não achava possível que os animais, e este em especial, devolvessem com afeto minha violência. Lupo, bem na verdade, é o motivo de meu texto. Ele é o porque do porque do porque. O porque eu sinto vergonha.

Agora continuo a minha historia, pois imagino que estejam todos curiosos com minha demorada falta de assunto. Sinto que os ouvintes acham o meu relato cansativo, por não ter ação. Mas tenham paciência com este velho, ele gosta da filosofia, e a pratico até mesmo neste relato. Não posso priva-lo de uma única palavra. Pois, se a ação é importante, uma vez que é fato, definindo a pessoa, as idéias são mais importantes, pois alertam para os valores da pessoa, além de formarem uma base sólida na qual as ações possam ser tomadas. Sem burrice. Sem um cérebro não existem ações bem feitas. E inteligência é algo em falta nesse mundo. Pois assim é mais cômodo para todos.

Mas devo ir aos fatos, aos atos, pois são neles que residem as partes compreensivas da historia. Em mais uma manhã de sol, sai com Luana pelo bosque da casa de Artur. Este tinha suas lições em seu aposento. E nos dois conversávamos e riamos alto, sem medo de sermos descobertos, pois a pior punição não estragaria o prazer de ouvir aquele riso. Depois descobri ser isso uma grande mentira, é claro. Mas era jovem e estúpido. Ainda não tinha recebido da vida uma carga suficiente de maturidade e não posso ser culpado pela minha inocência. Fato é que, naquele passeio consegui algo espetacular, um beijo.

Dia seguinte, sobre as mesmas circunstâncias, consegui algo muito mais interessante. Fizemos amor às escondidas. Eu visitei o paraíso por alguns momentos. Mas receio que o pronome tenha sido muito bem utilizado. Pois “Nos” não combina com a frase. Por ser mais afoito que ela, fui brutal de mais. Mas oras, o que se esperar, minha experiência vinha de cortesãs, não de amores. E não pude conter o impulso com a gentileza necessária. No momento, não admiti, mas ela, quando muito, sentiu prazer única e exclusivamente pela carne. Nenhuma paixão desperdiçada pelo jovem ajudante. E nenhuma grande conquista para ele, que nunca mais receberia permissão de algo parecido.

E, mesmo sem receber a permissão para outra aventura, ainda olhava com pena para o jovem Artur, tão tolo, sentado ao lado da jovem que amava, ouvindo ela contar estórias de flores e duendes, e contando outras sobre cavaleiros e magos. Pois ele não havia provado o que eu havia. E não podia deixar um sorriso escapar de meus lábios. Eu era um jovem tolo, como já disse. Muito mais cego pela conquista do que pelo amor. Pois sei hoje que as atitudes mais estúpidas não são tomadas na embriaguez, mas sim na confiança demasiada, no sentimento de vitória antecipada.

Não podia desconfiar de nada. Não podia, pois não queria. Mas mesmo assim fui condenado a conhecer aquilo que não queria. E como uma faca, a verdade se enterrou em meu peito, ferindo tudo em sua passagem. Descobri em uma noite de outono. Pela janela do quarto de Artur, vi os dois se beijando. Presenciei algo ainda pior. O prazer que não tinha visto no rosto de Luana. E ainda pior, presenciei uma conversa entre amantes. Presenciei a discussão deles sobre tudo que podiam discutir. Inclusive sobre mim. Fui chamado de coisas que tenho vergonha de reproduzir. Meu orgulho já foi dilacerado em vários pedaços, em vários formatos. Isso basta. Nada mais precisa ser dito.

E qual seria o próximo passo? Qual seria, dentre os homens, o próximo sentimento? O ódio. Digo sim, o ódio. Pois nessa historia de amor, meu coração se tornou irrecuperável, sendo invadido pelo próprio ódio. E odiei Luana. Por ter destruído meu orgulho, por ter preferido o estúpido principezinho, por ter me enganado, por ter me dado esperanças e pura e simplesmente por ama-la tanto. O que é engraçado. Pois o amor não combina com ódio, assim como rosas não combinam com moscas. Não fazia sentido odiá-la por isso. E ainda não faz. Mas o coração não nos deixa selecionar os sentimentos. E mesmo, naquele tempo, não querendo admitir para mim mesmo a verdade, hoje eu a admito. Pois sou velho, e cansei dos truques humanos. Finalmente, cansei da hipocrisia, me restando apenas a ceticismo. Ainda bem que isso acontece tarde. Minha vida teria sido impossível sem a hipocrisia. Assim como a vida de todos os medíocres. Pois é necessário coragem para apostar nas rodas da fortuna com a honestidade. Coragem ou burrice. Alias, duas características que muitas vezes são uma só.

A sensação foi horrível. Foi dilacerante. Pois amar e odiar ao mesmo tempo são as sensações mais difíceis, mais complicadas de se conciliar. Como aprendi após aquele dia, amar é fácil. Podemos escolher muitas coisas para se amar em alguém, inclusive os defeitos. Mas quando o ódio invade o coração, resta uma balança sem ponto de equilíbrio, sem escape. Pesa-se tudo com choro, muita dor, raiva e vontade de vingança. Uma vingança sem sentido e sem conclusões... e o pior, não estava preparado para isso. Mentiram para mim, mentiram sem receios. Malditos padres, malditos filósofos. Amor e ódio não estão em uma linha tênue, eles tem linhas separadas, que se atravessa com forças parecidas. Por isso, eles não são contrários. Nem implicam na exclusão mutua. Imagino que se odiasse primeiro e depois amasse, ficaria confuso. Mas este não foi o caso. Fiquei destruído, consumido por mim mesmo.

E não seria verdade que amor e ódio possam se contrastar com tamanha desarmonia, mas tamanha intensidade? Pois se um dificulta o outro, eles não se excluem e nem se destroem. Eles convivem fazendo baderna, como dois inimigos que sabem ser a convivência a única forma de não desaparecer. Pois, se um não é o contrario do outro, ambos possuem o mesmo contrario: a indiferença. E a indiferença é um estado anterior a bestialidade. Anterior a tudo. E por isso não é tão estranho que seja no contrario do nada, que exista tudo. Que exista tudo o que merece ser vivido, para o bem e para o mal. Para a dor e para o prazer.

Por tudo isso, eu olho para Lupo com uma surpresa e com uma sensação de inferioridade tão grande. Pois esse cão, tão maltratado pela vida, é capaz de ser mais forte do que eu e a maioria de nos jamais poderemos ser. Olho em seus olhos e vejo apenas o amor, não enxergando ódio. Estranhíssimo, principalmente para mim que sofri dessa historia mal contada. Pois sei que ele deveria me odiar. Ele teria motivos e eu tenho motivos para ser odiado. Sei me tratar de um homem mal. Mesmo assim, não reconheço isso em seus olhos. Reconheço o perdão. Pois, por mais estranho que seja, são os animais, no fim, que conseguem equilibrar aquela balança sem equilíbrio. Sei, hoje, que Lupo é superior, e que a humanidade não merece nada além de pó e sombra. Pó e sombra!

Mas que pecado teria eu enfim cometido? Oras, cometi muitos, muitos! Mas qual seria esse tão grandioso para temer o inferno? O ouvinte não entende, e nem poderia entender. Confesso que torturei e matei muita gente sobre ordens. Também confesso que fui muito cruel com os meus inimigos e com as minhas amantes. Mas nunca mais encostei um dedo, nem em Luana, nem em Artur. Fugi para nunca mais voltar, e os seus destinos eu desconheço. Poderia ter me vingado, mas não tive forças. O amor é algo complicado. Injeta e tira forças. Torna-se mestre, e nos escravos. Escravos de algo maior, algo do qual a escravidão é prazerosa e até bem vinda. E por isso, meu pecado, meu maior pecado, já foi dito e concluído. Ele foi, e é, ser tão pequeno, ser tão fraco, ter me recusado a evoluir. Pois se este não parece um pecado grande o suficiente, saibam que é por culpa dele que os outros foram cometidos. E afirmo que eu podia ter mudado, e minha grande chance foi naquele dia. Não foi a única, mas foi a maior de todas. Fugi para viver uma vida sem humanidade, e para entender, enfim, na velhice, a minha inferioridade. Por isso peço perdão. Por não ter conseguido equilibrar o amor e ódio, como Lupo faz, me tornando, a partir de então, um pecador. Por perder essa guerra. E afinal, essa não seria a única guerra que mereceria ser travada? E, por ironia do destino, não é a única guerra que os homens insistem em não travar, sucumbindo sem luta ao ódio? E não seria essa falta, na verdade, o maior de todos os pecados?

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Heróis


Não sei porque todos me odeiam. Ou seria isso um exagero das palavras alheias. Não penso que isto seja verdade. Tenho uma porção maior que a mão de aliados. Mas até ai, tenho outra porção de inimigos. E eles me dizem sem remorsos, como se tivessem certeza do julgamento, que todos me odeiam. Não posso dizer que sim ou que não. Posso dizer apenas que eu não me importo com essas manifestações tão crassas. A muito já me liberei do caminho da sabedoria para atingir o caminho da humanidade. E vejo, portanto, com muita felicidade essas manifestações. A hipocrisia não faz bem nem aos pobres, nem aos ricos. Ela é venenosa. E não ter que enfrenta-la é por muito um salto gigantesco. Bem. Eu, político de Atenas. Homem de muito poucas palavras. Sinto-me muito feliz por eles. Esses que me odeiam.

Mas afinal, como não poderiam me odiar? Estou ciente da responsabilidade que cai sobre minhas costas. Sobre as coisas que irritam os alheios, os concidadãos. Sei muito bem que eles têm motivos. E bons motivos! Afinal quem dentre todos é o mais bem relacionado diplomata? Pois sou eu. Tenho aliados e amigos espalhados pelos quatro cantos do mundo. Da Pérsia à ilha de Creta recebo presentes e hospitalidade. Sou amigo daqueles que o povo odeia. Sou quem mantém a paz. Quem, dentre os humanos, não odeia a paz? Como a hipocrisia já foi vencida não me importo de não responder. A resposta é tão natural que não necessita de intermediários.

Sou eu afinal quem construiu todas as pontes e reformou, contra todos os poderes públicos, as nossas muralhas. Afinal, entre embelezar os templos e construir barcos o povo sabe o que prefere. Ah sim, ele sabe. Porque os deuses são os protetores de nossos homens. Por isso entendo que meu trabalho não seja tão apreciado. Fiz porque acreditava no que fazia. Fiz até o fim, sem ajuda, sem triunfo. Apenas por ideal. Apenas por beleza. Que raiva temos de homens com ideais. Mas que raiva devemos ter! Esses que insistem em comportar-se como heróis. Será que se acham os escolhidos dos deuses... Oras meus caros. Mas não somos todos nos escolhidos dos deuses?

Mas entendo do fundo de minha alma. Fazer cumprir as leis votadas não cria muita popularidade. É extremamente odiável, não acham? Eu, pois, acho. Mesmo assim o fiz porque não tive escolha. Minha ética não permitiu outra saída. Amaldiçoada essa que os homens chamam de ética. Tão difícil de definir! Tão inimiga dos interesses dos próprios homens!

Além disso, sei... sei porque sei. Sou rico. Rico de mais. E isso cria medo, eu compreendo. Homens não querem fazer negócios comigo. Estão todos corretos. Têm medo que eu os deixe para trás. Entendo. Afinal sou estudado. Estudei em Alexandria e sei mais de sete idiomas. Argumento muito bem em praça publica e possivelmente não existe homem em Atenas mais bem sucedido nos negócios. Obviamente que eu posso, e alias, devo, estar passando a perna nos negociantes. Eles sabem disso. Afinal a ignorância deles fica tão a mostra. Tão pura e tão fragilizada ao meu lado. Eles têm razões para me temerem, para me odiarem. Os espertos sempre passam a perna! Mesmo se você não tem provas disso. Mas quem precisa de provas quando se tem a sabedoria dos burros?

E ainda, além de todos os males que aflijo, sei que ainda existe um tão ou maior que os demais. Tenho a mais linda mulher de Atenas. E os mais virtuosos filhos. E sou, eu mesmo, atraente. E a beleza não fica impune. E nem deveria! Como posso ousar ter tanta sorte, tanta felicidade. Sou um mal entre os demais. Sou irritante a todos os demais.

Sou influente também. E não me submeto, não ajoelho a ninguém. Como todos os servos devem sentir ódio. Como todos esses que ajoelham sentem raiva. Afinal, venço os mais poderosos e a submissão não faz parte do meu vocabulário. Lidero. E, convenhamos, quem agüenta aqueles que não se curvam, que insistem em se considerar dignos de coisa mais alta. Eu deveria ficar no meu lugar! Mas me acho especial. Oras! Se fosse um deles teria ódio de mim. Muito ódio!

Pois eu entendo. Entendo sim. Entendo que a minha luta pelo que acredito trás à tona o fato das pessoas não saberem no que acreditar. Que os meus argumentos quebram os preconceitos tão difundidos e tão mais simples. Que as minhas ideais derrubam a burrice. Que o meu sucesso cause medo e inveja dentre os que não o tem. Que o meu estudo cause calafrios aos ignorantes. Que o meu poder de decisão crie tumulto nos indecisos. Que a minha falta de publicidade seja comparada com a publicidade deslavada dos narcisos. Entendo que o meu perdão cause constrangimento. Entendo que a minha liderança cause reflexão, e que por isso outros se descubram menos lideres. Entendo que eles me odeiem. Entendo profundamente.

Porque, em todos os cantos do mundo, do Egito à Macedônia, existe uma verdade universal. E apenas uma. Os fracos têm medo dos fortes.

Não tenho ciúmes!

Não tenho ciúmes! Verdade! Calma, não precisa gritar. Vou lhe contar uma historia, você vai entender... Não quis dizer isso... Mas tem tudo haver. Nos dois sabemos o motivo dessa rejeição, mas eu não estou disposto a te deixar fazer tamanha barbárie por um motivo tão tolo. Sente... Garçom! Mais uma! Sim, sim, onde estava... ah sim... ia contar uma historia. Uma não, a historia. Artigo pessimamente empregado. Pois está é a historia da minha vida. É aquilo que definiu todas as minhas escolhas. É a busca mais intrínseca da minha alma. Apesar de não ser budista sempre acreditei em alma e em uma missão para cada um de nos. E essa é a missão da minha vida, e estou disposto a contar-la. Sem pedir nada em troca.

Tudo começou quando tinha dezenove anos. Como todas as decisões que realmente importam, ela foi tomada em um dia de tédio total. Não sei porque as decisões nesse período são especialmente importantes. Na maior parte dos casos elas começam e acabam no mesmo dia. Mas as que ficam, representam uma espécie de grito contra o tédio, representam uma luta contra aquela sensação. Por mais absurda que seja. É a pressão do tempo perdido. Já a angustia pode tornar as decisões mais rápidas. Mas dificilmente tem o mesmo impacto de uma decisão pensada e baseada na antítese da vida, o tédio. Essas sim importam. Essas sim mudam o mundo. Aposto que quando Einstein decidiu fazer a bomba atômica, era porque ele estava entediado com aquele monte de formulas e papelada. Nunca disse que as decisões são necessariamente boas. Elas apenas são importantes.

Em um dia de tédio, tive uma idéia para ocupar meu tempo. Descobrir a pior de todas as sensações humanas. A mais destrutiva. A mais opressora. E por assim vai... Acho que você consegue entender a pintura. Esperta do jeito que parece ser! Sempre achei que as morenas têm um olhar inteligente próprio, como ninfas que gozam de nos, pobres meninos... mas isso é outro problema. Como dizia, resolvi buscar a pior das sensações humanas. E isso me levou a uma serie de reflexões sem respostas. A verdade, é que imaginar, não é suficiente, esse é o tipo de conclusão que só pode ser feita empiricamente. E assim comecei a testar. Em outras pessoas, como qualquer bom cientista, é claro.

O erro mais comum nessas pesquisas é começar a procurar pelos sete pecados capitais. A verdade, é que eles são, pelo menos alguns, muito prazerosos. Tome a gula, por exemplo. Ninguém se sente infeliz por comer de mais. Você se sente infeliz por comer de menos. A não ser que você tenha anorexia. Mas nesse caso, a gula é punição, e bem que seria bem vinda. Portanto, não pode constituir um problema muito serio. Outros, como a avareza, são mais complexos. Eles não são destrutivos, pois não havia nada construído anteriormente. Digamos que são de uma infelicidade ética enorme. Mas não pode ser a pior dentre as sensações. A avareza, em especifico, ou o egoísmo, não constitui algo ruim por si só. Ele é ruim caso você tenha criado esperanças sobre alguém egoísta. Mas daí, a culpada seria a esperança, não o egoísmo. Esse é uma característica socialmente deseducada. Quem sabe até humanamente condenável. Mas é só.

Mas uma delas me pegou. O ódio. Ou raiva. A que você preferir. Dependendo da língua uma é mais forte do que a outra. Na nossa é o ódio, até por isso utilizei-a primeiro. Não consigo imaginar nenhuma característica mais carregada de pontos negativos do que essa. Ela é como uma fossa de pontos negativos que vão se acumulando. E é especialmente destrutiva. Poucas coisas podem agüentar o ódio de uma pessoa. Essa é uma característica que destrói tudo que foi construído, tudo o que poderia ter sido construído. E toda a sensação para o mal que merece ser experimentada. Uma vez é o que você necessita. Nada crescera naquele campo, por milhões de anos. Ou quem sabe até uma próxima encarnação, quando as almas serão obrigadas, por um ente extremamente sádico, a se reconciliarem a força. Como disse, não sou budista. Mas todas essas coisas espirituais me interessam muito. Sinto-me ligado com algo maior, às vezes me sinto pequeno diante... De tudo isso! Você não? Sabia que sim, já sentia que você acreditava nas mesmas coisas que eu... Alias, qual é o seu signo... Peixes?

Está convencida não? Eu também fiquei. Mas como já disse, a filosofia não é suficientemente boa. A parte empírica é extremamente importante. E a verdade é que, observando, descobri ser o ciúme a pior das sensações. Mas muito pior do que a inveja. Estranho não? Mas verdade de qualquer forma. Sei que essa é uma sensação que não pensamos quando buscamos a pior dentre as sensações. Não pensamos, pois ela não tem a conotação puramente negativa dentre outras. Todos nos a consideramos aceitável. Inicialmente! E que essa palavra seja marcada a fogo, pois é extremamente importante para o resto da historia.

Não, não, a inveja não é tão ruim. Sei que, muitas vezes, quando sentimos inveja, temos vergonha de falar, e na incompetência de achar a palavra especifica usamos ciúmes para diminuir o fato. Doce engano. Primeiro você não sentiu ciúmes, sentiu inveja. E a inveja impede a construção. Os ciúmes não. Ele não está presente desde o começo. Os ciúmes ocorrem quando invejamos algo que achamos que por direito é nosso. Algo que já conquistamos, ou achamos ter conquistado. Veja, ironicamente, ele prevê uma construção anterior a ele. Filosoficamente as coisas começam a fazer sentido. Ele é a mais destrutiva das sensações, pois é o verme que ataca as construções dos relacionamentos humanos. É o verme que ataca o amor e a amizade. Sem escrúpulos.

Percebi isso devido a um amigo. Como disse, a experiência foi empírica. Apesar de agora já ter arrumado argumentos. Mas, como dizia, foi devido a um amigo. Ele chorava compulsivamente. Nunca gostei de homens chorando no meu ombro. Tenho sempre uma sensação incomoda de fraqueza, como se soubesse que um dia seria eu naquela posição embaraçosa. E ele chorava muito. E me contava uma historia. A historia, melhor dizendo, do seu relacionamento. Acho que a cerveja não permite que utilize os artigos certos. Mas não estou bêbado. Apenas leve.

Contou-me a mais linda das historias de amor. Como havia conhecido ela. Dos passeios, dos amores, das risadas. Lembramos especialmente das risadas das pessoas amadas. Eu pelo menos lembro. Por isso gosto tanto quando você ri. É a lembrança que não vai se apagar da memória... Mas voltando. Contou-me tudo isso. E começou a contar os eventos seguintes. O ciúme diante de uma saída com um amigo. O ciúme diante de uma noite que não o convidasse para sair. O ciúme diante do amor que as outras pessoas ganhavam. E o ciúme é algo irracional, algo complicado. Ele oprime e tira espaço. Acaba consumindo a pessoa. E o relacionamento. No pior dos casos também consome a outra pessoa, que não sabe como atuar diante dessa característica. E finalmente, diante do mal-humor, da opressão, das acusações, a outra pessoa se cansa, e, por mais amor que tenha, pensa nela e acaba aquilo que nasceu belo, mas que foi consumido. O ciúme é como os cupins. Em baixas quantidades ele torna a manutenção da relação mais saudável, pois ela não fica antiga. Mas em altas quantidades, ele destrói as bases, até o ponto que a demolição, a quebra e o futuro desabamento é inevitável. E assim se deu com meu amigo. Que chorava a destruição do que de mais belo havia construído. Do seu primeiro grande amor. Chorava com uma criança. E não poderia reprimi-lo.

E foi ai que tudo ficou claro. Se o ódio é o ponto de acumulação de todas sensações propriamente negativas, o ciúme tem a ousada e sádica mania de grudar no ponto de acumulação de todas as boas sensações humanas. E corroe-las. E destruí-las. Você já está convencida? Pois é extremamente claro. O ódio destrói tudo ao seu caminho, seja bom ou ruim. Mas o ciúme destrói o bom, o infinitamente bom. Aquilo que nem o ódio consegue destruir. Ele destrói o amor, destrói a amizade, destrói a família. Ele é a maior pedra antes da felicidade. Ele é suicídio de nossos sucessos. Não posso pensar em nada pior do que isso. Não posso pensar em nada mais mórbido.

Mas o que isso prova? Só porque tenho esse abençoado, ou desgraçado, conhecimento, não significa que tenha resolvido o problema. Sim, é verdade. Mas isso é corrigível. Posto que, se não posso resolver com segurança, uma vez que o ciúme é a praga que ataca todas as pessoas, tenho a segurança de que não estou exagerando ou de que as coisas não são tão importantes. Fato é que excluir o ciúme de nossas vidas é impossível, e de utilidade questionável. Como já disse, ter em dose certa, pode fazer um relacionamento ser constantemente lubrificado, constantemente reerguido. Por isso digo que sei muito bem onde está o equilíbrio, e assim posso atingi-lo.

Ué!! Você está rindo!... Não é bom o suficiente?... Bem, digamos que existem historias que merecem ser difundidas, pelo bem da humanidade. Ou pelo bem de uma linda mulher. Mentira?... Não, não menti em momento nenhum...Tudo a mais pura verdade... Bem, sabia que com você a coisa teria que ser de uma classe mais elevada, senão você não acreditaria em mim... Mas quem na verdade mentiu aqui?

Passou a língua pelos lábios. A preparação é inconsciente, representa o objetivo masculino, não dando chance para enganos. Acaba a cerveja em um gole só. Levanta-se dando as costas aos amigos, e com um olhar de determinação atravessa o bar até a mesa daquela moça que não conseguiu parar de sorrir e mexer nos cabelos desde seus primeiros olhares. Não dando a menor duvida sobre o convite, mas misturando isso com uma ponta de embaraço. Isso não tira sua confiança. Apenas o prepara para uma luta um pouco maior. Apresenta-se e senta. Ela então lhe diz que tem um namorado. Ele não acredita em nenhuma palavra. Mesmo porque não são muitas. Saboreia a dificuldade que aparece. Pede um drinque para ela, contra o seu gosto. E começa. Começa aquilo que sabe fazer de melhor. Mente. Descaradamente. Quanto mais melhor, mais próximo de seu objetivo. Mas a mentira de um homem para uma mulher não é mentira, é a felicidade mutua. É a sobrevivência da espécie.

No fim, ele conseguiu o que queria. Depois de muitas risadas, ela se entrega dizendo que não tem namorado. Diz que namorou por oito anos e estava nervosa, agiu por reflexo. Ele sorri internamente. Comemora cada sorriso que conquistou com aquele absurdo de estória. Sabia muito bem que era ciumento... Ele, finalmente a beija. Mas o destino guarda uma ultima revelação para eles. Ou melhor, uma ultima mentira. Pois, ao se aceitar a humanidade, aceita-se com ela todos os sentimentos, para o bem e para o mal. Mas nesse momento, eles não precisam saber disso. Estão construindo. E se a construção está condenada, isso não quer dizer que ela não mereça ser construída. Tijolo por tijolo. Aproveitando-se cada segundo.

Banquete

Era um grande banquete. Lembro-me como se fosse ontem. O que, filosoficamente, não significa muito. Na minha atual situação tempo é muito pouco importante, e ele passa como para mim vinham e iam as ondas do mar Egeu. Fato é que, na minha monótona e surpreendente existência, esse dia me marcou. Como já disse era um banquete. Nem foi o maior que já presenciei. Mas certamente foi um dos mais interessantes. Faltaram alguns deuses importantes, é verdade. Mas a maioria veio, e isso era suficiente para deixar o grande e poderoso feliz.

O deus do vinho, da morte, da diversão, da economia, da caça, do Céu, do mar, e as deusas da beleza, da natureza, da terra, do amor, da piedade. Eram muitos e muitos os importantes naquela tarde. Por algum irônico motivo, hilário quem sabe, o deus da música não se encontrava entre nos. E eu, mero acompanhante do deus da morte acompanhava tudo ali. Acontece que, após as nossas mortes poucos são os lugares nos quais ele não está próximo, ou pelo menos constante. Acontece que o outro mundo é muito mais complicado e burocrático do que parece aos meros mortais. Eu mesmo tinha muitas idéias erradas de cá deste lado. Meus temores se realizaram em grande parte. E não foi, de maneira nenhuma, tão mal assim. Hoje sou um dos mais importantes escribas do deus da morte. É um trabalho tedioso e extremamente mecânico, mas mantém a mente ocupada. A eternidade, como se descobre, ocupa um tempo muito longo com coisas inúteis. Devo reconhecer, no entanto, que muitos filósofos, estudiosos e viajantes amam este lugar. É todo cheio de surpresa. Muitos, como eu, não têm grandes comentários a fazer, uma ponta de ressentimento e decepção. Porém, me parece extremamente irônico que sejam os sacerdotes das mais diversas religiões os mais decepcionados. Competindo de perto com os médicos. Por algum motivo...

Mas não foi deste mundo que vim contar. Vim falar de uma experiência, no mínimo interessante àquele que não a presenciou. Marcante a mim em especial. Estava eu, no meio dos deuses que quando era mortal costumava chamar de outras coisas. Zeus, Hades, Atenas. Aqui se nota rápido que nomes não interessam. Havia também ninfas, duendes, titãs, gnomos, fadas e ouras criaturas de escalão inferior. Não que as ninfas sejam de categoria abaixo. Elas são especialmente interessantes... Estávamos todos em uma imensa mesa com todas as comidas imagináveis e o melhor vinho que se pode fazer. Não é preciso dizer que havia música. A música é o que forma o universo, mas isso confidencio apenas a vós. Uma espécie de dança era feita por alguns animais em um palco mais distante. Animais de outro mundo, é claro. Muitas risadas. O nosso grande deus do divertimento promovia a alegria da festa, como sempre. Cortejava as moças, o que nos deixava especialmente apreensivos. Sempre me lembro quando ouve a confusão causada por uma maça dourada. Não, não era de ouro não. E nem tinha nada haver com a discórdia não. Zeus (chamarei pelo nome mortal) é um piadista, acima de tudo. O universo é musica, com letras em formas de piadas e malandragem. Tal qual o banquete.

Chamo a cena... Ainda não. Acho que os personagens principais merecem uma apresentação formal. Ambos são servos. Servos dos mais interessantes de se ter. Meio ingratos é verdade. Mudam os seus mestres com uma freqüência e com uma facilidade de criar inveja à todos os sexomaniacos. São, ou eram, os maiores traidores deste e de todos os mundos. Faziam, bem na verdade, uma grande orgia na qual trocavam de parceiro dando largas risadas. Nunca estavam juntos, diga-se de passagem para depois se explicar. Enquanto um estava junto com a deusa do amor, outro estava junto da morte. E depois invertiam, e mudavam, passando pelo divertimento, pelo vinho, pela justiça, pela natureza, prisão, pela solidão, pela amargura. Tinham picos é verdade. Chegavam a promover orgias com deuses de diferentes tipos, juntando sadicamente a morte com a beleza e o amor. O próprio Zeus chegou a participar. Eram servos pouco leais e de grande valor. Todos os desejavam. Eram muito influentes. E, sobretudo, eram menos servos do que amos, pelo menos naqueles tempos tão... não sei precisar.

Mas agora explico. Ambos não se davam bem. Acontece que elas eram irmãs gêmeas, porém antagônicas. Cada qual nasceu com uma pendência muito grande. Assim se tornaram inimigas. Inimigas terríveis. Sua luta era desumana, o que não significa muito. Filhas da própria Geia. Vindas diretamente do coração da deusa mãe. Infelizmente no cruzamento havia um homem. Um mero mortal. E dele nasceram sensações humanas. Abençoado e desgraçado homem. Gerou a dor e o prazer. Esperem, acho melhor destacar, para não se ter duvida. Gerou a Dor e o Prazer, nossos personagens, tão antagônicos e tão incríveis.

Pois nessa era, o Prazer estava com a deusa do amor e a Dor com o da morte. E já fazia muito tempo que ambos se encaravam com olhares assassinos. O problema desses olhares neste mundo à cá, é que eles nunca serão satisfeitos. Por motivos óbvios, acredito. Mas estes olhares são perigosos indos de criaturas tão inteligentes e traiçoeiras. Trazem grandes confusões. Percebe-se rápido que, quando se trata de política, o que menos importa é a verdade e a dignidade. O que importa é habilidade de discurso e a malandragem. E a política, como se percebe, está em tudo.

A luta de duas entidades tão especiais e traiçoeiras provoca um conhecimento quase infinito. Isso porque elas se revezam na malandragem, na enganação. Cada qual pratica ações um tanto antiéticas, mas de estrema inteligência. A vivacidade está em grande parte ligada à malandragem. Assim como a esperteza. E, sempre me interessou a luta entre personalidades tão fortes e marcantes. A luta de gigantes. A história, ou melhor, a vida, seja ela à cá ou do vosso lado é marcada e modificada conforme a personalidade e os caprichos dos personagens. Aprende-se rápido que questões de vital importância são decididas pela vaidade. Assim também com a inimizade das duas. Vaidade, porque não. Ou falta de paciência, como perceberão no devido tempo. Mas paciência, mesmo aqui, não é das virtudes mais difundidas. O que não deixa de ser um tanto melodramático.

Os deuses costumam definir cada uma das gêmeas por sexos diferentes. Pessoalmente isso não me faz grande sentido. Não tenho certeza, ao menos se existem sexos em tais seres. É verdade que existem grandes surpresas neste outro lugar da existência. É surpreendente o que se aprende. Nunca mais hei de estranhar qualquer coisa do mundo que vós vos encontrais.

Mas é fato que os deuses consideram essa característica. Numa de minhas conversas com Hades, que são raras, porém lembre-se que na eternidade coisas raras se repetem infinitas vezes, o que me da um certo status... Como dizia, em uma conversa com Hades, posterior ao acontecimento, ele me confidenciou que o Prazer é ligado ao sexo feminino, e a Dor com o masculino. Quis questiona-lo, é claro. Mas os deuses não têm vontade de responder o que consideram perguntas tolas. Portanto ele não respondeu. O máximo que tenho autoridade para dizer é que o Prazer é ligado a este sexo devido a beleza, a delicadeza, e a sua astúcia. Pois sim. Como uma serpente. Já a Dor não tenho autoridade para dizer muito. Porém existe uma fofoca generalizada dentre os escribas, que é devido à força e ao caráter. Não sei bem o que eles querem dizer com isso. Existem muitos tipos de caráter. E, ao que me parece, a Dor é ótima mentirosa. Ou mentiroso.

Chamo a cena, agora, sem mais delongas, os nossos dois protagonistas. Aconteceu tudo de uma forma simplória e banal, certamente evitável. Ambos estavam se servindo de vinho. Já haviam tomado bastante, mesmo para estas estranhas entidades, vos garanto. E foi ai que se iniciou uma briga. Briga de largas proporções... Oras, a quem tento enganar. Ambos estavam bêbados. Era uma briga de bêbados, com todas as características de tais brigas. E eram espalhafatosas. Tão espalhafatosa que quebrou a grande harpa sagrada do próprio Zeus, organizador da festa. E foi esse o maior erro. Quando a música parou, parou a festa. E um irado deus dos deuses se levantou de sua poltrona.

Até deuses tiveram medo. Eu não me sinto envergonhado de dizer que engasguei com o vinho em minha boca, e me encolhi na forma mais parecida com a fetal que uma cadeira permite a um homem. E a cólera de Zeus caiu sobre dois seres. Porém os seus respectivos amos se levantaram também. Sim, foi o da morte e a do amor. Hades e Afrodite, no entanto, são demais fortes e orgulhosos para receber sermões. E foi nesse passo que os dois irmãos se encararam. Lembro, como se fosse ontem das palavras. Apesar de não poder repeti-las com exatidão. Após uma breve discussão, todos os três deuses chegaram a um acordo. A irmandade prevaleceu. Zeus não culparia os outros dois deuses, caso entregassem as criaturas para um devido julgamento e punição. Hades e Afrodite não gostaram, mas acabaram aceitando. Hades depois me confidenciou que ele não era servo de grande valia. Na verdade tenho duvidas quanto a isso. Algo a mais o motivava. Quem sabe um ligeiro sadismo? Ou quem sabe o medo? Talvez o medo de ser traído? Considero engraçado o fato de, quando estamos prestes a sofrermos traição, preferirmos trair antes. Troca-se a virtude pelo medo. Essa serpente da alma.

Silêncio. Isso foi o que procedeu a discussão. Zeus andou até os réus. E permaneceu em silêncio. Uma cara absolutamente irada. Aquilo não seria levado medianamente. Era necessário um castigo de verdade. Uma punição que os ferisse. A ira de um deus, como se descobre, não tem nada de justa. É apenas mais uma demonstração de poder. E que demonstração. E talvez vocês se perguntem o porque de toda essa ira. Uma harpa, apenas uma harpa. Isso é como se raciocina o homem comum. Sei disso, pois leio o que escrevo. E vós não sabeis de todos os fatores. Pois existem outros fatores. Nem eu os conheço por inteiro. Vivi muito depois dos gêmeos terem nascido. Sei que houvera outros. E muitos. Brigas com diversos tipos de deuses. E não é difícil entender. O prazer e a dor fazem os seres terem atitudes pouco virtuosas ou justas, e, principalmente, mal pensadas. E isso irrita. Quando um deus é manipulado, ele entra num estado de vingança cega. Mas Zeus, até ali tinha mantido a ordem. Julgando com justiça àqueles dois. Derrubem uma harpa, que afinal é o produto e o produtor do universo, e a justiça fica suspensa, fim do antigo aliado.

E como eles gostariam de voltar atrás. A sim. Eu imagino isso. Dariam tudo para tal. Cada qual serviria o vinho do outro. Trocariam caricias até. Mas o destino não revela os resultados de decisões mal tomadas. Nem das bem tomadas. E os dois brincaram com aquilo que não deviam. Foi com um brilho nos olhos que Zeus perdeu a cara seria e sorriu. Um sorriso alegre, sombrio. E mais muitos outros adjetivos insuficientes. Um sorriso sem precedentes. Ele tinha tomado a sua decisão. Era a melhor que conseguia pensar. E de fato não foi nada ruim. Chocou alguns. E satisfez outros. Como já disse, apesar de não ter juntado antes, o Prazer e a Dor tem muitos aliados, assim como muitos inimigos. E os últimos se deliciaram com a maldade. Um castigo a altura dos grandes estrategistas que brigavam até ali. Pois ocupava a eternidade.

O grande e poderoso ordenou a um ciclope que trouxesse uma corrente das mais fortes. Encarou os dois, enquanto eles pareciam verificar com cuidado o significado das palavras. E se deliciou quando eles perceberam a mais importante palavra da frase. Uma palavra normalmente ignorada. Sem importância. Porém, em condenações, até o artigo deve ser observado com cuidado. E quando o ciclope chegou, não havia mais duvida, pelo menos dentre os grandes daquela sala, do que aconteceria. Com um volver de suas mãos cada ponta da imensa corrente de ferro, feita pelos mesmos ciclopes que construíram as armas dos três irmãos, se fechou nas cabeças do Prazer e da Dor.

E foi assim que eles ficaram presos. Presos um ao outro. Foram expulsos da festa, mas isso não significava muito. Eles não poderiam ir mais a lugar nenhum sem que o outro fosse junto. Inimigos juntos para toda a eternidade. O ódio dos dois teria que ser reduzido se ambos quisessem sobreviver de forma digna. Porém, isso, apesar de extremamente inteligente, me causa calafrios. Pois agora, sempre que a dor vem, o prazer vem junto, e vice-versa. E, caso ambos consigam esquecer as diferenças, ai então eles levarão os deuses a loucura. Assim como levam os homens. E a loucura no plano espiritual me enerva um pouco. Sem a loucura o mundo espiritual já é burocrático de mais. Com ela, possivelmente a papelada vai aumentar. E com ela o trabalho. Torço todos os dias que inimizade entre as duas não só continue, mas se amplie.

Mas foram os homens que mais sentiram os resultados daquele dia. A partir daquela data o prazer e a dor começaram a andar juntos. E nenhum deles vem sem ser acompanhado pelo outro. E isso se reflete em absolutamente tudo no universo. Não seria verdade? Exemplos se multiplicam aos milhares. Quão dolorida é a castração de prazeres que se desconhece? E o contrário também. Quanto prazer sentiria um prisioneiro quando as correntes que o seguram fossem libertadas? Ou quanta dor sentiria um homem que perdesse a pessoa amada? Pois sim. Faz um sentido masoquista. Não é difícil perceber que aquela condenação foi passada ao resto da humanidade, pela eternidade.

Estranho, estranhíssimo talvez, para a mente dos ignorantes, que ambas sejam antagônicas e ao mesmo tempo formem uma dupla harmoniosa. Pois, se não podem ser encontradas juntas, ao se ser objeto de uma das duas, deve-se esperar a outra. E esta é uma forma de harmonia. Nem que seja imposta.

Mas agora me deixem. Deixem-me um pouco. Já paguei a minha divida de dois mil anos. Oras Sócrates. Porque, de todas as pessoas fostes lembrar-se de mim antes de morrer. Confesso ter mudado o estilo de meus textos. Mas dois mil anos escrevendo de forma parecida são tediosos. E já faz isso e mais alguns séculos. Acusaste-me de falta de criatividade, de insensibilidade. Pois sim, meu amigo. Ficamos muito íntimos a cá. E não poderia deixar de cumprir o que pedistes. Uma questão de orgulho, oras. Os mortais desconfiam de mim. Desconfiam de minha criação ao não contar tão interessante fabula. Pois bem. Eu, Esopo, cumpro e cumpro de bom grado. Penso ser essa a primeira coisa útil que faço a mil anos, pelo menos. Afinal, de fabulista passei a um escriba burocrático. Concordo plenamente com Sócrates. A morte guarda sortes muito estranhas. Porém, me sinto confiante em dizer que ela guarda, também, os melhores amigos que se poderia ter. É o prazer e a dor juntos. Enjaulados na alma. Para faze-la crescer.

Referências:

Diálogos (Platão): Fédon ou da alma. Escrito como se fosse Sócrates. Referencia à 3ª ou 4ª pagina (dependendo da edição).

Sócrates: “- Creio que se Esopo tivesse pensado nisso*, com certeza teria criado uma fabula**.”

* questão da dor e do prazer

** para reconciliar os inimigos, Zeus os amarrou pelas cabeças

Esopo: fabulista grego (séculos VII – VI a.C.), origem escreava e depois alforriado. A reunião atual de suas fabulas (Fábulas de Esopo) é creditada ao monge Planúdio (século XIV).

Tomei algumas liberdades em relação ao tema. Afinal, acredito que Esopo não escreveria exatamente o que Sócrates (Platão?) desejava, nem da maneira como ele imaginava a questão da dor e do prazer. Tão pouco o que eu desejo. Empresto o seu nome para minha versão dos acontecimentos. Espero que ele, lá do outro lado, não se importe.