segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Banquete

Era um grande banquete. Lembro-me como se fosse ontem. O que, filosoficamente, não significa muito. Na minha atual situação tempo é muito pouco importante, e ele passa como para mim vinham e iam as ondas do mar Egeu. Fato é que, na minha monótona e surpreendente existência, esse dia me marcou. Como já disse era um banquete. Nem foi o maior que já presenciei. Mas certamente foi um dos mais interessantes. Faltaram alguns deuses importantes, é verdade. Mas a maioria veio, e isso era suficiente para deixar o grande e poderoso feliz.

O deus do vinho, da morte, da diversão, da economia, da caça, do Céu, do mar, e as deusas da beleza, da natureza, da terra, do amor, da piedade. Eram muitos e muitos os importantes naquela tarde. Por algum irônico motivo, hilário quem sabe, o deus da música não se encontrava entre nos. E eu, mero acompanhante do deus da morte acompanhava tudo ali. Acontece que, após as nossas mortes poucos são os lugares nos quais ele não está próximo, ou pelo menos constante. Acontece que o outro mundo é muito mais complicado e burocrático do que parece aos meros mortais. Eu mesmo tinha muitas idéias erradas de cá deste lado. Meus temores se realizaram em grande parte. E não foi, de maneira nenhuma, tão mal assim. Hoje sou um dos mais importantes escribas do deus da morte. É um trabalho tedioso e extremamente mecânico, mas mantém a mente ocupada. A eternidade, como se descobre, ocupa um tempo muito longo com coisas inúteis. Devo reconhecer, no entanto, que muitos filósofos, estudiosos e viajantes amam este lugar. É todo cheio de surpresa. Muitos, como eu, não têm grandes comentários a fazer, uma ponta de ressentimento e decepção. Porém, me parece extremamente irônico que sejam os sacerdotes das mais diversas religiões os mais decepcionados. Competindo de perto com os médicos. Por algum motivo...

Mas não foi deste mundo que vim contar. Vim falar de uma experiência, no mínimo interessante àquele que não a presenciou. Marcante a mim em especial. Estava eu, no meio dos deuses que quando era mortal costumava chamar de outras coisas. Zeus, Hades, Atenas. Aqui se nota rápido que nomes não interessam. Havia também ninfas, duendes, titãs, gnomos, fadas e ouras criaturas de escalão inferior. Não que as ninfas sejam de categoria abaixo. Elas são especialmente interessantes... Estávamos todos em uma imensa mesa com todas as comidas imagináveis e o melhor vinho que se pode fazer. Não é preciso dizer que havia música. A música é o que forma o universo, mas isso confidencio apenas a vós. Uma espécie de dança era feita por alguns animais em um palco mais distante. Animais de outro mundo, é claro. Muitas risadas. O nosso grande deus do divertimento promovia a alegria da festa, como sempre. Cortejava as moças, o que nos deixava especialmente apreensivos. Sempre me lembro quando ouve a confusão causada por uma maça dourada. Não, não era de ouro não. E nem tinha nada haver com a discórdia não. Zeus (chamarei pelo nome mortal) é um piadista, acima de tudo. O universo é musica, com letras em formas de piadas e malandragem. Tal qual o banquete.

Chamo a cena... Ainda não. Acho que os personagens principais merecem uma apresentação formal. Ambos são servos. Servos dos mais interessantes de se ter. Meio ingratos é verdade. Mudam os seus mestres com uma freqüência e com uma facilidade de criar inveja à todos os sexomaniacos. São, ou eram, os maiores traidores deste e de todos os mundos. Faziam, bem na verdade, uma grande orgia na qual trocavam de parceiro dando largas risadas. Nunca estavam juntos, diga-se de passagem para depois se explicar. Enquanto um estava junto com a deusa do amor, outro estava junto da morte. E depois invertiam, e mudavam, passando pelo divertimento, pelo vinho, pela justiça, pela natureza, prisão, pela solidão, pela amargura. Tinham picos é verdade. Chegavam a promover orgias com deuses de diferentes tipos, juntando sadicamente a morte com a beleza e o amor. O próprio Zeus chegou a participar. Eram servos pouco leais e de grande valor. Todos os desejavam. Eram muito influentes. E, sobretudo, eram menos servos do que amos, pelo menos naqueles tempos tão... não sei precisar.

Mas agora explico. Ambos não se davam bem. Acontece que elas eram irmãs gêmeas, porém antagônicas. Cada qual nasceu com uma pendência muito grande. Assim se tornaram inimigas. Inimigas terríveis. Sua luta era desumana, o que não significa muito. Filhas da própria Geia. Vindas diretamente do coração da deusa mãe. Infelizmente no cruzamento havia um homem. Um mero mortal. E dele nasceram sensações humanas. Abençoado e desgraçado homem. Gerou a dor e o prazer. Esperem, acho melhor destacar, para não se ter duvida. Gerou a Dor e o Prazer, nossos personagens, tão antagônicos e tão incríveis.

Pois nessa era, o Prazer estava com a deusa do amor e a Dor com o da morte. E já fazia muito tempo que ambos se encaravam com olhares assassinos. O problema desses olhares neste mundo à cá, é que eles nunca serão satisfeitos. Por motivos óbvios, acredito. Mas estes olhares são perigosos indos de criaturas tão inteligentes e traiçoeiras. Trazem grandes confusões. Percebe-se rápido que, quando se trata de política, o que menos importa é a verdade e a dignidade. O que importa é habilidade de discurso e a malandragem. E a política, como se percebe, está em tudo.

A luta de duas entidades tão especiais e traiçoeiras provoca um conhecimento quase infinito. Isso porque elas se revezam na malandragem, na enganação. Cada qual pratica ações um tanto antiéticas, mas de estrema inteligência. A vivacidade está em grande parte ligada à malandragem. Assim como a esperteza. E, sempre me interessou a luta entre personalidades tão fortes e marcantes. A luta de gigantes. A história, ou melhor, a vida, seja ela à cá ou do vosso lado é marcada e modificada conforme a personalidade e os caprichos dos personagens. Aprende-se rápido que questões de vital importância são decididas pela vaidade. Assim também com a inimizade das duas. Vaidade, porque não. Ou falta de paciência, como perceberão no devido tempo. Mas paciência, mesmo aqui, não é das virtudes mais difundidas. O que não deixa de ser um tanto melodramático.

Os deuses costumam definir cada uma das gêmeas por sexos diferentes. Pessoalmente isso não me faz grande sentido. Não tenho certeza, ao menos se existem sexos em tais seres. É verdade que existem grandes surpresas neste outro lugar da existência. É surpreendente o que se aprende. Nunca mais hei de estranhar qualquer coisa do mundo que vós vos encontrais.

Mas é fato que os deuses consideram essa característica. Numa de minhas conversas com Hades, que são raras, porém lembre-se que na eternidade coisas raras se repetem infinitas vezes, o que me da um certo status... Como dizia, em uma conversa com Hades, posterior ao acontecimento, ele me confidenciou que o Prazer é ligado ao sexo feminino, e a Dor com o masculino. Quis questiona-lo, é claro. Mas os deuses não têm vontade de responder o que consideram perguntas tolas. Portanto ele não respondeu. O máximo que tenho autoridade para dizer é que o Prazer é ligado a este sexo devido a beleza, a delicadeza, e a sua astúcia. Pois sim. Como uma serpente. Já a Dor não tenho autoridade para dizer muito. Porém existe uma fofoca generalizada dentre os escribas, que é devido à força e ao caráter. Não sei bem o que eles querem dizer com isso. Existem muitos tipos de caráter. E, ao que me parece, a Dor é ótima mentirosa. Ou mentiroso.

Chamo a cena, agora, sem mais delongas, os nossos dois protagonistas. Aconteceu tudo de uma forma simplória e banal, certamente evitável. Ambos estavam se servindo de vinho. Já haviam tomado bastante, mesmo para estas estranhas entidades, vos garanto. E foi ai que se iniciou uma briga. Briga de largas proporções... Oras, a quem tento enganar. Ambos estavam bêbados. Era uma briga de bêbados, com todas as características de tais brigas. E eram espalhafatosas. Tão espalhafatosa que quebrou a grande harpa sagrada do próprio Zeus, organizador da festa. E foi esse o maior erro. Quando a música parou, parou a festa. E um irado deus dos deuses se levantou de sua poltrona.

Até deuses tiveram medo. Eu não me sinto envergonhado de dizer que engasguei com o vinho em minha boca, e me encolhi na forma mais parecida com a fetal que uma cadeira permite a um homem. E a cólera de Zeus caiu sobre dois seres. Porém os seus respectivos amos se levantaram também. Sim, foi o da morte e a do amor. Hades e Afrodite, no entanto, são demais fortes e orgulhosos para receber sermões. E foi nesse passo que os dois irmãos se encararam. Lembro, como se fosse ontem das palavras. Apesar de não poder repeti-las com exatidão. Após uma breve discussão, todos os três deuses chegaram a um acordo. A irmandade prevaleceu. Zeus não culparia os outros dois deuses, caso entregassem as criaturas para um devido julgamento e punição. Hades e Afrodite não gostaram, mas acabaram aceitando. Hades depois me confidenciou que ele não era servo de grande valia. Na verdade tenho duvidas quanto a isso. Algo a mais o motivava. Quem sabe um ligeiro sadismo? Ou quem sabe o medo? Talvez o medo de ser traído? Considero engraçado o fato de, quando estamos prestes a sofrermos traição, preferirmos trair antes. Troca-se a virtude pelo medo. Essa serpente da alma.

Silêncio. Isso foi o que procedeu a discussão. Zeus andou até os réus. E permaneceu em silêncio. Uma cara absolutamente irada. Aquilo não seria levado medianamente. Era necessário um castigo de verdade. Uma punição que os ferisse. A ira de um deus, como se descobre, não tem nada de justa. É apenas mais uma demonstração de poder. E que demonstração. E talvez vocês se perguntem o porque de toda essa ira. Uma harpa, apenas uma harpa. Isso é como se raciocina o homem comum. Sei disso, pois leio o que escrevo. E vós não sabeis de todos os fatores. Pois existem outros fatores. Nem eu os conheço por inteiro. Vivi muito depois dos gêmeos terem nascido. Sei que houvera outros. E muitos. Brigas com diversos tipos de deuses. E não é difícil entender. O prazer e a dor fazem os seres terem atitudes pouco virtuosas ou justas, e, principalmente, mal pensadas. E isso irrita. Quando um deus é manipulado, ele entra num estado de vingança cega. Mas Zeus, até ali tinha mantido a ordem. Julgando com justiça àqueles dois. Derrubem uma harpa, que afinal é o produto e o produtor do universo, e a justiça fica suspensa, fim do antigo aliado.

E como eles gostariam de voltar atrás. A sim. Eu imagino isso. Dariam tudo para tal. Cada qual serviria o vinho do outro. Trocariam caricias até. Mas o destino não revela os resultados de decisões mal tomadas. Nem das bem tomadas. E os dois brincaram com aquilo que não deviam. Foi com um brilho nos olhos que Zeus perdeu a cara seria e sorriu. Um sorriso alegre, sombrio. E mais muitos outros adjetivos insuficientes. Um sorriso sem precedentes. Ele tinha tomado a sua decisão. Era a melhor que conseguia pensar. E de fato não foi nada ruim. Chocou alguns. E satisfez outros. Como já disse, apesar de não ter juntado antes, o Prazer e a Dor tem muitos aliados, assim como muitos inimigos. E os últimos se deliciaram com a maldade. Um castigo a altura dos grandes estrategistas que brigavam até ali. Pois ocupava a eternidade.

O grande e poderoso ordenou a um ciclope que trouxesse uma corrente das mais fortes. Encarou os dois, enquanto eles pareciam verificar com cuidado o significado das palavras. E se deliciou quando eles perceberam a mais importante palavra da frase. Uma palavra normalmente ignorada. Sem importância. Porém, em condenações, até o artigo deve ser observado com cuidado. E quando o ciclope chegou, não havia mais duvida, pelo menos dentre os grandes daquela sala, do que aconteceria. Com um volver de suas mãos cada ponta da imensa corrente de ferro, feita pelos mesmos ciclopes que construíram as armas dos três irmãos, se fechou nas cabeças do Prazer e da Dor.

E foi assim que eles ficaram presos. Presos um ao outro. Foram expulsos da festa, mas isso não significava muito. Eles não poderiam ir mais a lugar nenhum sem que o outro fosse junto. Inimigos juntos para toda a eternidade. O ódio dos dois teria que ser reduzido se ambos quisessem sobreviver de forma digna. Porém, isso, apesar de extremamente inteligente, me causa calafrios. Pois agora, sempre que a dor vem, o prazer vem junto, e vice-versa. E, caso ambos consigam esquecer as diferenças, ai então eles levarão os deuses a loucura. Assim como levam os homens. E a loucura no plano espiritual me enerva um pouco. Sem a loucura o mundo espiritual já é burocrático de mais. Com ela, possivelmente a papelada vai aumentar. E com ela o trabalho. Torço todos os dias que inimizade entre as duas não só continue, mas se amplie.

Mas foram os homens que mais sentiram os resultados daquele dia. A partir daquela data o prazer e a dor começaram a andar juntos. E nenhum deles vem sem ser acompanhado pelo outro. E isso se reflete em absolutamente tudo no universo. Não seria verdade? Exemplos se multiplicam aos milhares. Quão dolorida é a castração de prazeres que se desconhece? E o contrário também. Quanto prazer sentiria um prisioneiro quando as correntes que o seguram fossem libertadas? Ou quanta dor sentiria um homem que perdesse a pessoa amada? Pois sim. Faz um sentido masoquista. Não é difícil perceber que aquela condenação foi passada ao resto da humanidade, pela eternidade.

Estranho, estranhíssimo talvez, para a mente dos ignorantes, que ambas sejam antagônicas e ao mesmo tempo formem uma dupla harmoniosa. Pois, se não podem ser encontradas juntas, ao se ser objeto de uma das duas, deve-se esperar a outra. E esta é uma forma de harmonia. Nem que seja imposta.

Mas agora me deixem. Deixem-me um pouco. Já paguei a minha divida de dois mil anos. Oras Sócrates. Porque, de todas as pessoas fostes lembrar-se de mim antes de morrer. Confesso ter mudado o estilo de meus textos. Mas dois mil anos escrevendo de forma parecida são tediosos. E já faz isso e mais alguns séculos. Acusaste-me de falta de criatividade, de insensibilidade. Pois sim, meu amigo. Ficamos muito íntimos a cá. E não poderia deixar de cumprir o que pedistes. Uma questão de orgulho, oras. Os mortais desconfiam de mim. Desconfiam de minha criação ao não contar tão interessante fabula. Pois bem. Eu, Esopo, cumpro e cumpro de bom grado. Penso ser essa a primeira coisa útil que faço a mil anos, pelo menos. Afinal, de fabulista passei a um escriba burocrático. Concordo plenamente com Sócrates. A morte guarda sortes muito estranhas. Porém, me sinto confiante em dizer que ela guarda, também, os melhores amigos que se poderia ter. É o prazer e a dor juntos. Enjaulados na alma. Para faze-la crescer.

Referências:

Diálogos (Platão): Fédon ou da alma. Escrito como se fosse Sócrates. Referencia à 3ª ou 4ª pagina (dependendo da edição).

Sócrates: “- Creio que se Esopo tivesse pensado nisso*, com certeza teria criado uma fabula**.”

* questão da dor e do prazer

** para reconciliar os inimigos, Zeus os amarrou pelas cabeças

Esopo: fabulista grego (séculos VII – VI a.C.), origem escreava e depois alforriado. A reunião atual de suas fabulas (Fábulas de Esopo) é creditada ao monge Planúdio (século XIV).

Tomei algumas liberdades em relação ao tema. Afinal, acredito que Esopo não escreveria exatamente o que Sócrates (Platão?) desejava, nem da maneira como ele imaginava a questão da dor e do prazer. Tão pouco o que eu desejo. Empresto o seu nome para minha versão dos acontecimentos. Espero que ele, lá do outro lado, não se importe.

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